No último mês, iniciamos um novo programa de enriquecimento ambiental em nosso Mantenedor de Fauna Silvestre. O enriquecimento ambiental é uma prática fundamental para melhorar a qualidade de vida desses animais, promovendo sua saúde física e mental. Porém, ele precisa ser devidamente planejado e executado para não causar malefícios ao invés de benefícios. O planejamento do programa foi realizado pela especialista em bem-estar animal, Jacqueline Muniz, que também participou do nosso blog deste mês, esclarecendo assuntos importantes.
O que é o enriquecimento ambiental?
O enriquecimento ambiental consiste na introdução de elementos e atividades nos recintos dos animais que estimulam sua curiosidade, criatividade e instintos naturais. Essa prática visa proporcionar um ambiente mais enriquecedor e próximo do que seria o natural, adaptado às necessidades específicas de cada espécie. Existem cinco principais tipos de enriquecimento:
1. Enriquecimento Físico:
– Relacionado à estrutura física do recinto.
– Inclui elementos como cordas, redes, vegetação, poleiros e troncos.
– Proporciona aos animais oportunidades de exploração do ambiente, simulando situações mais próximas ao natural.
2. Enriquecimento Sensorial:
– Estimula os animais através dos cinco sentidos (olfato, paladar, visão, audição e tato).
– Envolve sons de água em movimento, vozes de outros animais, ervas aromáticas e até mesmo cheiros de urina e fezes.
– Estimula a exploração do recinto, a marcação de território e o bem-estar geral.
3. Enriquecimento Cognitivo
– Estimula os animais a resolver problemas e suas capacidades intelectuais.
– Inclui dispositivos como bolas, móbiles, caixas, alimentos escondidos (em associação com o enriquecimento alimentar).
– Desenvolve a motivação exploratória e ocupa o tempo dos animais.
4. Enriquecimento Social:
– Consiste na convivência com outros indivíduos.
– É especialmente importante para espécies gregárias (que vivem em grupos).
– Promove interações sociais semelhantes às que ocorreriam na natureza.
5. Enriquecimento Alimentar:
– Utiliza alimentos alternativos à dieta regular dos animais.
– Oferece variedade nutritiva e desafia os animais a buscar sua recompensa.
– Auxilia o controle de peso dos animais, diminuindo comportamentos compulsivos.
Macaco-prego comendo tenébrio oferecido durante atividade de enriquecimento ambiental alimentar.
Benefícios do enriquecimento ambiental
O enriquecimento ambiental não apenas melhora o bem-estar dos animais, mas também previne e trata comportamentos anômalos, como estereotipias, agressividade e inatividade. É uma ferramenta essencial para manter a integridade física e psicológica dos animais em cativeiro.
No caso de animais que serão reintroduzidos na natureza, o enriquecimento ambiental pode contribuir antecipando o processo. Com a diminuição de comportamentos indesejados como automutilação e arrancamento de penas, os animais se tornam mais rapidamente aptos à soltura. Este fato foi observado em um estudo com maritacas (Aratinga leucophthalma).
Quando implementado corretamente, o enriquecimento ambiental traz uma série de benefícios. Alguns são facilmente perceptíveis, como a redução da mortalidade de animais, enquanto outros, como a diminuição do estresse em animais subordinados em grupos hierárquicos, podem ser mais sutis e mais difíceis de serem observadas.
É importante salientar que a percepção do estresse em diferentes grupos de animais como aves, felinos, caninos, primatas, entre outros, exige um alto nível de conhecimento. Alguns grupos podem apresentar sinais mais facilmente reconhecíveis por nós, seres humanos, porém, outros não. Isso é válido, inclusive, para animais de estimação como cães e gatos. Os cães, por serem animais sociais, geralmente, são mais fáceis de decifrar, enquanto os gatos podem ser mais difíceis de interpretar.
Enriquecimento ambiental não é brincadeira!
Um referencial teórico robusto é a chave para realizar um enriquecimento ambiental eficaz.
No entanto, nem todo programa é levado a sério como deveria. Como aponta Jacqueline Muniz, médica veterinária e especialista em fisiatria, fisioterapia e reabilitação de silvestres, “muitos veem o enriquecimento ambiental como uma brincadeira”, e ainda complementa “é um dever de quem trabalha com animais silvestres em cativeiro”.
Segundo Jacqueline, que foi responsável por desenvolver um programa de enriquecimento para cada um dos 19 recintos do Mantenedor de Fauna Silvestre do Instituto Libio, deve existir um planejamento estratégico baseado em etograma para cada animal ou recinto.
O enriquecimento ambiental é muito mais do que só adicionar uma diversidade de frutas e atrativos no recinto. Cada atividade é executada com um objetivo e seus efeitos nos animais precisam ser observados com rigor e padronização.
Uma análise de riscos também precisa ser feita no intuito de minimizá-los. Jacqueline explica que todos os materiais e objetos introduzidos nos recintos podem se tornar corpos estranhos aos animais. Por isso, é muito importante pensar na composição dos objetos: se há presença de plástico, colas, ou outras substâncias perigosas que podem ser ingeridas. No caso da instalação de poleiros, o mesmo precisa estar seguramente fixo. Ainda, na confecção de caixas com furos: é preciso assegurar que não há risco do animal ficar com algum membro preso.
Atividade de enriquecimento ambiental físico feita com onças-pintadas na Associação Mata Ciliar. Jacqueline Muniz conta que o risco das onças morderem a caixa d’água já era previsto.
O enriquecimento ambiental na prática
Como falamos aqui anteriormente, o enriquecimento ambiental precisa ser levado a sério e ser feito por especialistas. Porém, sabemos que nem todos os dias os profissionais responsáveis pelo programa de enriquecimento estarão disponíveis no local para acompanhar os animais. Muitas vezes, o trabalho prático fica com os tratadores e, por conta disso, as equipes precisam estar bastante alinhadas quanto à metodologia.
Jacqueline ressalta que o tempo de observação é o fator diferencial na habilidade de compreender os animais, por isso, geralmente os tratadores, mesmo sem formação acadêmica, possuem um “olho treinado”, conseguindo identificar alterações sutis de comportamento e até sinais patológicos em potencial.
Ao lhe perguntar sobre a dificuldade de realizar o enriquecimento ambiental com diferentes grupos de animais, a médica veterinária responde: “não existe uma espécie ou grupo específico de animais que seja difícil de trabalhar, o que mais influencia é a limitação do observador”.
A dica é começar com o enriquecimento alimentar para deixar o animal mais confortável com a presença das pessoas. Depois, associar o alimentar com alguma outra técnica.
Um ponto importante a considerar é o tempo de duração de cada atividade do enriquecimento. É preciso estipular um período no qual o enriquecimento seja introduzido e retirado do recinto, caso contrário, ele se torna uma ambientação. O ideal é que os animais interajam com tal atividade por um tempo, liberando endorfinas, e depois sigam para outras atividades.
Cada animal, um objetivo diferente
Aqui no Instituto Libio vivem alguns animais que possuem sequelas do tráfico ou de maus-tratos. Por conta disso, o planejamento do enriquecimento ambiental se torna ainda mais desafiador, mas com uma boa base científica é possível encontrar caminhos para todos.
Para a Dodó, uma arara-vermelha, completamente cega, o objetivo do enriquecimento ambiental será a estimulação da exploração tátil do chão do recinto. Além de estimulações dos sentidos auditivos e olfativos.
Animais tímidos ou muito traumatizados, como é o caso de alguns macacos-prego e araras canindé e vermelhas, precisam ser introduzidos às atividades de enriquecimento de forma sutil e gradativa. Nestes casos, os avanços podem ser pequenos: às vezes o animal vai interagir apenas olhando para um objeto introduzido no recinto, e o aumento deste tempo de observação já será um avanço.
Em sua carreira focada em felinos, Jacqueline já trabalhou bastante com onças-pintadas, e conta que esta espécie possui muitas semelhanças comportamentais com os gatos domésticos. Durante seu trabalho na Associação Mata Ciliar, devido ao convívio intenso com as onças, Jacqueline relata que algumas delas ficavam extremamente apegadas a sua presença, chegando a regurgitar quando ela se aproximava, por conta da ansiedade. As onças associaram a presença dela com a realização de atividades do enriquecimento ambiental, e por isso, se animavam muito com sua chegada.
A partir desse caso, Jacqueline aproveita para pontuar a importância de manter uma neutralidade e evitar uma aproximação excessiva perante animais silvestres em cativeiro, pois, além de ir contra a naturalidade do animal.
O bem-estar animal é uma área relativamente nova da ciência
Felizmente, o bem-estar animal tem ganhado reconhecimento com o passar do tempo. Em 1964 foi criado um comitê na Inglaterra para discutir questões de bem-estar ligadas a animais domésticos. O conceito das 5 liberdades foi então atribuído pela primeira vez a animais. Esta teoria define as necessidades básicas dos animais de forma hierárquica, sendo elas:
- Estar livre de fome e sede
- Estar livre de desconforto
- Estar livre de dor doença e injúria
- Ter liberdade para expressar os comportamentos naturais da espécie
- Estar livre de medo e de estresse
Apenas em 1973, Charles Watson, pesquisador da Universidade de Edimburgo no Reino Unido, conduziu o primeiro estudo de enriquecimento ambiental em um zoológico. Depois
disso, vários estudos começaram a ser desenvolvidos nessa linha, em diferentes países, aumentando a base científica sobre o bem-estar animal.
Trazer bem-estar para animais é uma tarefa bastante complexa, e que exige muita dedicação. O aumento de estudos científicos sobre enriquecimento ambiental é fundamental para aprimoramento das técnicas e melhorias dos resultados.