Em agosto deste ano, fomos surpreendidos com a triste notícia que o lobo-guará Canelinha havia falecido. Em abril de 2024, esse lobinho havia completado seu aniversário de soltura (se você não conhece essa história, clique aqui).

A despedida desse animal, além dos sentimentos de tristeza, gerou grande repercussão nas redes sociais das instituições que noticiaram o fato. Nesse misto de sentimentos, muitas dúvidas surgiram em relação ao contexto do Canelinha: Como isso aconteceu? Por que não foi evitado? O colar de monitoramento fazia mal para ele?

Comentários extraídos das redes sociais

Resolvemos aproveitar o espaço desse blog para explicar as principais dúvidas que surgiram nas redes sociais. Assim, para discutirmos algumas dessas questões, convidamos a Médica Veterinária Flávia Fiori, que além de ser a Responsável Técnica do Instituto Libio, também é veterinária do Projeto Sou Amigo do Lobo e uma das profissionais responsáveis pelos cuidados do Canelinha.

Médica veterinária Flávia Fiori e o Lobo-guará Canelinha – Foto: Tatiane Rech

Flávia, o que é a Sarna? Quem ela afeta/de onde ela vem/como é transmitida?

Existem alguns tipos de sarna. No geral, são doenças que afetam a pele dos animais. A sarna que ocorre nos lobos-guarás é a sarcóptica, provocada pelo ácaro Sarcoptes scabiei. Essa sarna acomete mais de 100 mamíferos no mundo todo, não sendo relatada apenas na Antártida. Sua origem é incerta, mas é uma doença natural dos seres humanos e relatos iniciais sugerem que foi transmitida para os animais domésticos. 

Há duas formas de transmissão: a direta, na qual um animal doente precisa ter contato direto com um animal saudável, e a indireta, quando um animal saudável precisa ter contato com “fômites” – nome dado para objetos inanimados que podem espalhar os agentes infecciosos – para se infestar.

O Canelinha foi um caso isolado?

“Não. Através do projeto Lobos do Pardo, pudemos identificar muitos casos de sarna, principalmente na divisa São Paulo – Minas Gerais. Canelinha foi solto em uma área que tínhamos um conhecimento maior da saúde dos animais, inclusive muitos foram tratados para a sarna, porém ele decidiu que o território dele seria distante do que havíamos idealizado. Ele foi para uma região em que havia mais animais com sarna (pelo menos dois). Conseguimos capturar um dos indivíduos. O outro não foi possível capturar devido à dificuldade de captura desses animais – são animais que podem ter amplas faixas de território, o que dificulta a captura.”

Por que é tão difícil tratar sarna em animais em vida livre?

“A sarna, apesar de ser conhecida há muitos anos e afetar muitos animais, ainda é uma doença pouco compreendida. Onde não se sabe ao certo qual a fonte e forma de infestação primária desses animais, o que dificulta o manejo. Uma vez que o animal é tratado e a fonte de infestação continua lá, é possível que ele se infeste novamente.”

Se nós sabemos desses desafios, por que não deixar o animal vivendo em cativeiro ao invés deles continuarem livres?

“Por alguns motivos, mas o principal deles, é: tratando de animais ameaçados de extinção e que cumprem funções ecológicas importantes para o ecossistema, como é o caso do lobo-guará, entendemos que seja importante a presença desses animais em seu habitat natural. Como forma de garantir a perpetuação da espécie e suas funções.”

Como as pessoas podem colaborar para que casos de sarna e outras doenças não continuem acontecendo?

“Especificamente, cuidem dos seus animais domésticos. Mantenham eles vacinados, desparasitados, com acesso à água potável, comida e cuidados veterinários. Se responsabilizem por eles, dessa forma podemos garantir uma melhor saúde para os animais silvestres. De forma geral, acredito que a maior colaboração seja a conscientização da população. Quando todos se conscientizam que de alguma forma são responsáveis pelo o que acontece no mundo, as coisas podem melhorar.”

Foto: Instituto Pró-Carnívoros; ICMBio/CENAP, Instituto Pró-Carnívoros.

Como funciona um colar de monitoramento GPS? Ele dificulta a vida do animal? Com ele, não conseguimos capturá-lo?

“Através do colar é possível saber as localizações exatas do animal a cada hora. Dessa forma é possível direcionar os locais mais apropriados para posicionar as armadilhas de captura e caso seja necessário, conseguimos chegar exatamente no lugar onde o animal está. Porém, o colar não nos permite identificar uma doença de pele no animal, como foi o caso do Canelinha. Conseguimos suspeitar que o animal está com algum problema, se existe alteração na sua movimentação, que não foi o caso.

O colar não dificulta a vida do animal. Ele é confeccionado com material apropriado, que evita alergias na pele do animal. Por norma, o peso do colar não pode exceder 20% do peso do animal e ele possui um peso bem inferior ao que seria permitido. O animal continua caçando e vivendo normalmente. Se pudéssemos fazer uma analogia, seria algo semelhante a quando colocamos um relógio no pulso, sentimos ele ali nos primeiros minutos e depois, nos acostumamos. O colar é uma ferramenta extremamente importante para a conservação de espécies ameaçadas e após cerca de um ano, um mecanismo chamado ‘dropoff’ é acionado e o colar se desprende sozinho do pescoço do animal”

Como considerações finais, é importante enfatizar a seriedade do trabalho de todos os profissionais envolvidos, prezando, em primeiro lugar, sempre, pela saúde do animal. Os procedimentos envolvidos no manejo de um animal silvestre estão amparados nas melhores práticas veterinárias e seguindo as evidências que outras pesquisas apontam.

Canelinha foi um exemplo de superação e, apesar da tristeza que sentimos com sua passagem, temos muito orgulho do trabalho realizado e felizes pela esperança que esse animal traz para projetos de conservação.

Adeus e Obrigado, Canelinha!

Foto: Gustavo Figuerôa

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